Num “sistema conceitual” dois aspectos precisam ser distinguidos: conteúdo e forma.
O conteúdo dos conceitos diz respeito aos observáveis, derivados das “abstrações empíricas” sobre o objeto do conhecimento.
A forma refere-se à reunião dos objetos do conhecimento num todo, apoiando-se nas suas qualidades comuns, isto é, em suas relações de equivalência, e deriva das abstrações reflexivas.
O desenvolvimento da abstração reflexiva assemelha-se a uma depuração progressiva de conquista das formas, tal como ilustrado na figura.
Cada patamar de abstração reflexiva comporta “formas” cada vez mais ricas e, portanto, mais aptas a aprender os “conteúdos”, ou seja, a obter novos observáveis.
A formação de cada um desses níveis ou graus de abstração implica novas reflexões de natureza qualitativamente diferente, de modo que a coordenação de suas ações não é da mesma natureza da coordenação de suas representações conceitualizadas, fruto das reconstruções que ocorrem em cada projeção.
Processo em Espiral de Conteúdo e Forma
As abstrações que formam e constróem o conhecimento, compõem um processo em espiral.
Toda projeção de conteúdo supõe a intervenção de uma forma (reflexão).
Os conteúdo projetados, por sua vez, envolvem a construção de novas formas, oriundas das reflexões.
Assim, existe uma alternância ininterrupta de projeções – reflexões – projeções.
Uma sequência de conteúdos – formas – conteúdos reelaborados … e assim por diante.
São criadas novas formas, abrangendo noções cada vez mais amplas, sem um fim e sem um começo absolutos.
Nos níveis superiores de abstração é a reflexão que cada vez mais conduz o processo.
Nos níveis inferiores, o motor essencial das abstrações é constituído pelas projeções.
É o próprio desenvolvimento das abstrações reflexivas que engendra a construção de novas formas de representar conteúdos.
Formas essas que possibilitam a elaboração de estruturas lógico-matemáticas e de explicações causais para os fenômenos físicos.
Nos períodos iniciais do desenvolvimento, os conteúdos são sobretudo os observáveis.
Em seguida, eles passam a ser formas e prosseguem construindo formas de formas.
A riqueza crescente de formas face aos conteúdos conduz a dois resultados.
Um é o aperfeiçoamento das “abstrações empíricas”, pelos novos instrumentos de assimilação dela resultantes.
Outro é a formação de abstrações pseudo empíricas, uma vez que os objetos passam a se revestir de propriedades mais numerosas, introduzidas pela reflexão.
As abstrações pseudo-empíricas são importantes nesses níveis elementares e, igualmente, no
período das operações concretas, quando o sujeito tem ainda necessidade de ver concretizada essa
operação sobre os objetos.
Elas servem, como afirmou Piaget (1977), de suporte às abstrações reflexivas.
Mas, na medida em que o progresso das abstrações reflexivas distancia o sujeito dos conteúdos concretizados, a abstração refletida vai preponderando progressivamente, até que, no período formal, chega a ser uma extensão das projeções e reflexões.
É contudo relevante destacar que as abstrações refletidas permanecem como que atrasadas em relação ao desenvolvimento das reflexivas.
São elas que irão se tornar reflexões sobre reflexões anteriores, caracterizando o pensamento refletido propriamente dito e os sistemas lógico-matemáticos de natureza formal, próprios do raciocínio científico.
A evolução das abstrações reflexivas e empíricas merecem uma alusão neste momento, para que o processo construtivo do conhecimento se esclareça.
O desenvolvimento da abstração reflexiva implica o aperfeiçoamento do mecanismo de reflexões.
Sua função no primeiro nível de projeções – projeções pré-representativas e representação das ações sucessivas – é o de elaborar quadros assimiladores, visando a abstração empírica.
Trata-se de uma origem modesta, uma vez que o sujeito é inconsciente da abstração e que há uma pequena diferenciação entre formas e conteúdos.
No nível das reconstituições e das comparações, os progressos da abstração conseguem gerar
funções e operações, mas com a condição de se apoiarem em abstrações pseudo empíricas tais, que
os resultados das projeções e reflexões permanecem materializados nos objetos transformados e
enriquecidos pela ação do sujeito.
Uma das formas finais da abstração reflexiva é a formalização, ou tematização retrospectiva,
caso limite em que a forma se liberta dos conteúdos.
Têm-se finalmente as abstrações refletidas.
Já a evolução da abstração empírica é completamente diferente. Em todos os níveis o seu funcionamento inclui, ao menos em uma parte, abstrações reflexivas.
De fato, para que se extraia de um objeto físico uma propriedade que lhe é inerente, como a cor, há que se fazê-lo a partir de uma quadro lógico-matemático, que deriva da abstração reflexiva. Assim, por exemplo, um giz é branco,
porque não é de nenhuma outra cor que não a sua própria.
O desenvolvimento da abstração empírica subordina-se de modo crescente à abstração
reflexiva.
Nos estados iniciais do processo de conhecimento, a abstração empírica predomina sobre a
abstração reflexiva.
Nos estados posteriores, inverte-se cada vez mais a proporção e as abstrações
reflexivas vão permitir progressos consideráveis à qualidade e à adequação das abstrações empíricas
ao real.
É que nos estados elementares, em que a abstração reflexiva é mínima, o sujeito consegue apenas registrar o que é perceptível nos objetos e realiza unicamente uma leitura quase pura, global e aparente dos mesmos.
Os avanços da conceituação das relações de ordem e classe, enfim, a construção das
estruturas lógico-matemáticas, acrescidas da métrica espacial e dos sistemas de referência
incrementam de modo crescente as propriedades dos objetos e das ações, que passam a ser
observáveis, depois de terem sido desconsideradas ou deformadas.
Assim é que um dado objeto, ou evento, que anteriormente não era “captável” em suas especificidades, passa a ser cada vez mais conhecido pelo sujeito e, portanto, melhor compreendido, graças à intervenção das abstrações
reflexivas.
O lançamento de uma bola para derrubar uma pilha de caixas aprimora-se em termos de estratégias mais adequadas e eficientes para atingir seu fim, na medida em que o sujeito se torna capaz de distinguir os observáveis dos objetos (peso da bola e das caixas, arranjo espacial das mesmas…) e das ações (distância entre o alvo e o sujeito que lança a bola, impulso dado à ação de lançar o projétil, direção do lançamento, para atingir a pilha, de modo a derrubar o maior número de caixas…).
A assimetria entre os dois tipos de abstração – em que a reflexiva alcança um patamar que funciona num estado praticamente puro e em que a empírica não evolui, a não ser pelo concurso da reflexiva – é devida às relações indissociáveis entre a assimilação e a acomodação
Decerto a abstração reflexiva deriva das coordenações de ações e, portanto, da assimilação recíproca dos
esquemas de ações ou operações.
A abstração empírica se apóia nos observáveis e, dessa forma, refere-se à acomodação dos esquemas aos objetos.
A acomodação, no entanto, por se subordinar sempre a um esquema assimilação, jamais funciona em estado puro.
Na abstração reflexiva, o aumento da compreensão (formas) e da extensão (conteúdos) é simultâneo, porque conteúdos novos só se elaboram através das formas.
O mesmo não ocorre na abstração empírica, em que o aumento das formas é determinado pela ampliação dos conteúdos observados, aos quais elas se submetem.
Sintetizando, há predomínio, nas abstrações empíricas, da extensão das classes, o que é devido à descoberta de novas propriedades dos objetos.
O que prevalece nas abstrações reflexivas é a compreensão, ou melhor, a introdução de novos atributos aos objetos pela ação do sujeito sobre os
mesmos.
Neste caso, as formas são criadas pela experiência e não apenas retirada dela, como acontece nas abstrações empíricas.
Novos conteúdos são engendrados por novas formas e as formas vão se construindo autonomamente, dado que a compreensão, num certo momento, não depende mais da extensão dos conteúdos.
As abstrações, portanto, constituem fontes de novas estruturações, porque conduzem o sujeito
à generalização de seus conhecimentos.
Generalizar consiste em assimilar o desconhecido como sendo conhecido. Esse processo
implica o apoio mútuo entre abstrações e generalizações, conforme o que se segue.
Primeiramente é preciso distinguir as formas de generalizações possíveis. Piaget definiu duas,
quais sejam: as generalizações construtivas e indutivas.
À abstração empírica correspondem as generalizações indutivas e às abstrações reflexiva e
refletida, as generalizações construtivas.
As generalizações que se referem às abstrações empíricas conduzem à extensão dos
conhecimentos, isto é, a encontrar em novos objetos propriedades que neles já existam, mas a partir
da descoberta de propriedades semelhantes em outros objetos anteriormente conhecidos.
Por exemplo, um turista reconhecer que a cidade do Rio de Janeiro é uma metrópole, a partir do que ela se
parece com Nova Iorque, ou perceber que uma pessoa é descendente de árabes, pela semelhança
entre seus caracteres fisionômicos e os de outra pessoa, da mesma nacionalidade.
As generalizações que dizem respeito às abstrações reflexivas estão ligadas à compreensão,
isto é, à introdução em novos objetos de uma propriedade que nele não existia, mas que foi criada a
partir da ação do sujeito sobre esse objeto.
Nesse caso, por exemplo, considerar que um objeto C é menor do que A, porque A>B>C não implica uma descoberta (o tamanho de C existe em si mesmo), mas a criação de uma relação – transitividade – entre esses objetos, relação essa que é devida à ação do sujeito sobre os mesmos.
Assim, as generalizações indutivas vão do particular para o geral; caminham do alguns para o
todos, por extensão.